quinta-feira, 20 de setembro de 2012

"A última corrida de touros em Arronches"

A infausta morte, ocorrida a 16 de Março, de Francisco Matias, membro do grupo de Forcados Amadores de Portalegre, quando treinava a chamada “sorte da gaiola” numa tenta em Esperança, Arronches, trouxe-me à memória o conto de Luís Rebelo da Silva (1822-1871) que li no meu terceiro ano do liceu, por constar de uma selecta de língua portuguesa.

Muita gente se lembra desse conto, “Última corrida de touros em Salvaterra”, que até já deu a letra de um fado. Mas, para quem nunca o leu, acrescento que também aí há uma morte na arena, embora de um cavaleiro, o Conde dos Arcos. O velho pai, o Marquês de Marialva, que assistia à lide, desceu da bancada para enfrentar o touro, conseguindo ao matá-lo vingar a morte do filho. A corrida era real pois D. José estava a assistir, acompanhado pelo Marquês de Pombal. Nesta altura, o melhor é dar a palavra ao escritor, que narra assim o diálogo entre o rei e o primeiro-ministro:

“Sebastião José de Carvalho voltava de propósito as costas à praça, falando com o monarca. Punia assim a barbaridade do circo. — Temos guerra com a Espanha, Senhor. É inevitável. Vossa Majestade não pode consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassalos! Se continuássemos neste caminho... cedo iria Portugal à vela. — Foi a última corrida, marquês. A morte do conde dos Arcos acabou com os touros reais, enquanto eu reinar.” 

Fui agora averiguar a veracidade desta história. A morte do Conde dos Arcos foi, de facto, autêntica, embora não tenha ocorrido na praça de Salvaterra, sob o olhar do rei e da sua corte (D. José já tinha falecido), mas sim num “brinco”, à vara larga, num sítio da lezíria perto de Salvaterra. O escritor romanceou bastante o episódio de modo que este melhor entrasse na literatura... Se eu, em jovem, julguei verídica a conclusão, agora limito-me a desejar que o tivesse sido: o fim das corridas de touros em Salvaterra. Impressionado com as circunstâncias da morte do jovem portalegrense, ao mesmo tempo que apresento os pêsames à sua família e amigos, não posso deixar de pensar que uma boa forma de manter viva a memória do jovem – o sexto forcado a morrer em lides taurinas nos últimos vinte anos! - seria determinar que a última corrida em Arronches, tal como a de Salvaterra no conto, tivesse mesmo sido a última.

D. José pode não ter proibido as corridas de touros, mas D. Maria II fê-lo em todo o território nacional. Em 1836, doze anos antes de Rebelo da Silva publicar o seu conto, o ministro do Reino Passos Manuel promulgou um decreto proibindo as touradas:

 “Considerando que as corridas de touros são um divertimento bárbaro e impróprio de Nações civilizadas, bem assim que semelhantes espectáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade, e desejando eu remover todas as causas que possam impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa, hei por bem decretar que de hora em diante fiquem proibidas em todo o Reino as corridas de touros.” 

A proibição não durou mais do que escassos nove meses, tendo a tradição voltado a ser o que era. Nos dias de hoje surgiu, porém, uma nova interdição de touros. A maioria municipal socialista acaba de declarar Viana do Castelo a primeira “cidade anti-touradas” em Portugal, emulando 53 cidades espanholas. O que se vai fazer com a praça de touros de Viana? Pois a ideia da Câmara é excelente: transformá-la num Centro Ciência Viva, um espaço cultural aberto a todos e não apenas aos aficionados.

Aos defensores dos espectáculos tauromáquicos têm-se oposto os defensores dos direitos dos animais. Se os primeiros dizem que “se há alguém que cuida e que ama os touros são os próprios toureiros", os segundos ripostam que isso "é o mesmo que dizer que os pedófilos são os melhores amigos das crianças" (Público, 5/12/2008). Como argumento para o fim das touradas, não só em Arronches como no resto do país, julgo que nem é preciso invocar os direitos dos animais. Quando há uma absurda sucessão de mortes humanas, bastará invocar os direitos dos homens.»


 Crónica de Carlos Fiolhais in "Público"
Março 2009

(vale a pena lerem os comentários desta crónica)

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