terça-feira, 27 de novembro de 2012

Idanha-a-Nova. O extermínio dos touros enraivecidos


Direcção-Geral de Veterinária diz que já não há touros em Segura, mas a história vai continuar muitos anos na memória das gentes da aldeia


Esta é uma história de vingança que acaba numa terça-feira no silêncio da morgue de Castelo Branco. Zé Manel, o pedreiro clandestino, pôs-se a pé manhã cedo com a ideia de matar. Dias antes tinha andado a pintar a igreja da aldeia. O padre pagou-lhe em dinheiro vivo. Toda a gente sabia que o forasteiro, que foi para Segura casar com uma moça da terra, trabalhava de forma clandestina. Até que as Finanças souberam. Penhoraram--lhe a casa dos pais, para os lados de Lisboa, e obrigaram-no a pagar anos a fio de impostos acumulados. O pedreiro, que não tinha dinheiro, desconfiou logo da presidente da junta. Nessa manhã espreitou-a, já com a espingarda escondida debaixo do casaco. Os dois tiros ouviram-se em todas as casas da aldeia e quando os bombeiros de Idanha-a-Nova chegaram à junta de freguesia, pouco depois das 10 da manhã do dia 12 de Junho, Lurdes Sobreiro, antiga modista em Lisboa, já estava sem pulso. O marido, que a tinha ido visitar, ainda estava vivo.

Vieram ambulâncias, carros da polícia, um helicóptero do INEM e as televisões. José acabaria por morrer no hospital no mesmo dia. A GNR apressou-se a explicar que o homicídio estava relacionado com “divergências antigas”. Zé Manel, 62 anos, pôs a caçadeira debaixo do braço, fez-se à estrada, cruzou de carro os terrenos do doutor Neco e foi-se entregar ao posto da guarda da Zebreira, aldeia vizinha.

Há muito que a população de Segura, no concelho de Idanha, se habituou à tragédia e aos requintes das histórias de vingança. E há muito que os quase 200 eleitores da freguesia – praticamente todos desempregados, reformados ou a receber subsídios do Estado – aprenderam a lidar com as perguntas indiscretas dos jornalistas. Ultimamente, por causa da manada de mais de duas centenas de touros pretos e bravios que assombraram a terra durante quase dez anos. E nos últimos dias culpa da mega-operação de abate que a Direcção-Geral de Veterinária (DGV) levou a cabo para matar os animais.

Num espaço de cinco dias morreram 117 touros e ontem foi anunciado oficialmente que já só sobram “dois ou três”. Segura pode respirar de alívio.

PARTE II, A CHEGADA DO DOUTOR 
Esta história de vingança tem quase 20 anos e começa na torre do relógio – o ponto mais alto da terra, a que os habitantes chamam “o castelo”. Um forasteiro chamado Eduardo, que pouco tempo depois de chegar viria a tornar-se conhecido pela alcunha de “doutor Neco”, levou a mulher à aldeia onde o pai comprara meia dúzia de pequenos terrenos para mandar construir uma reserva de caça. Os anos passaram e a ideia nunca foi avante. Neco, o forasteiro, abraçou-se à mulher, fixou as serranias que do alto de Segura se perdem vista e mentiu-lhe. “Tudo o que os teus olhos conseguem alcançar daqui é nosso, mulher.” Nem dez anos depois, a mentira tornou--se profecia e o doutor Neco dono de metade dos terrenos à volta da aldeia, numa extensão de quase 3 mil hectares até à Zebreira.

O doutor Neco, veterinário, cresceu com os três irmãos na zona de Oliveira de Azeméis. O pai, também veterinário, era apaixonado pela caça e cruzou-se um dia por acaso com um dos homens mais influentes de Segura, Manuel Torres. Juntos tiveram a ideia de criar a reserva. Ainda chegou a comprar alguns terrenos, mas por desleixo o plano nunca foi avante. Anos mais tarde, Neco pegou no sonho do pai, comprou tudo quanto pôde e construiu uma quinta com animais.

O povo nunca encarou com bons olhos a chegada do doutor forasteiro que, ainda por cima, teve a ousadia de querer ser dono de tudo o que a vista pode alcançar em Segura. Mesmo assim, todos o tratavam com reverência e por doutor. O caso de ódio camuflado tornou-se mais evidente quando Neco tentou reivindicar um pedaço de terra, contíguo à sua quinta, num baldio que pertence ao povo e onde todos os habitantes têm uma parcela para semear. Fez-se uma assembleia popular que ia acabando à estalada. O doutor não havia de meter lá os pés, que já tinha terreno a mais e além disso nem era da terra. O assunto caiu mal às gentes de Segura e ao veterinário – que entretanto empregara dezenas de homens da aldeia na quinta.

Diz-se em Segura que o doutor até nem é mau homem. Outros, que não dão o nome, garantem que é o “pior bandido” que algum dia pisou aquelas bandas. Também há quem diga que o Neco “é formado em aldrabão”. Como o Zé, que trabalhou para ele duas vezes. Cuidava-lhe das 232 vacas mansas, dos 80 cavalos e arranjava-lhe as aramadas (vedações) da quinta. O Neco prometeu-lhe 500 euros por mês, pagos à socapa, só que passaram-se dois meses e o empregado nunca viu o dinheiro. Foi-se embora zangado e decidido a nunca mais pôr os pés nas terras do doutor. Um tempo depois, e como o trabalho não abunda na raia, Zé voltou a confiar no veterinário e deixou-se empregar outra vez na quinta. Três meses e meio depois continuava sem receber um tostão. Veio-se embora e desde então, já lá vão uns seis anos, nunca mais arranjou trabalho.

Conta-se em Segura que o Neco não pagava certo. Houve até casos como o de Raul, que, não tendo recebido a horas, decidiu levar um dos cavalos da quinta para casa, como uma espécie de fiança. Os anos passaram e o bicho passou a fazer parte da família do agricultor. Outros homens da terra seguiram o exemplo.

Os que em Segura defendem o doutor Neco – quase todos às escondidas – também contam que alguns homens da aldeia decidiram organizar-se em grupos para se vingarem do veterinário. Nesse tempo era costume ouvir os cães ladrar em alvoroço nos quintais de Segura pela calada da noite. A milícia organizada saltava da cama de propósito para ir destruir as vedações da quinta do veterinário. Os animais fugiam e o Neco perdia dinheiro. As aramadas eram arranjadas dias depois, mas não tardavam a voltar a aparecer tombadas. Perderam-se ovelhas, cavalos, porcos e vacas. Até que um dia o doutor Neco se zangou de vez. Jurou, irado, que nunca mais havia de pôr os pés no povo.

PARTE III, A CHEGADA DOS TOUROS 
Esta é a história da vingança do doutor Neco. Dias depois de se encher de ira, um camião atravessava, a grande velocidade, as ruas de Segura. Lá dentro seguiam duas dezenas de touros bravos. Com animais enraivecidos e daquele porte na quinta, nunca mais ninguém se atreveria a derrubar--lhe as vedações. E foi assim que os touros, que entretanto viraram estrelas da televisão nacional, passaram a palmilhar os terrenos do concelho de Idanha-a-Nova. A natureza encarregou-se da segunda parte da vingança do veterinário e os animais bravios acasalaram com as vacas mansas. Multiplicaram-se. Tornaram-se uma espécie de exército descontrolado. Com o passar do tempo, a quinta deixou de ter empregados, o doutor deixou de aparecer, as aramadas foram ficando podres e os touros não tardaram a assombrar as ruas de Segura.

Quaresma, um reformado dos Bombeiros do Regimento de Lisboa, foi o primeiro a avistar os animais bravios dentro da aldeia, não sabe dizer ao certo há quantos anos. Um dia, ainda o Sol não se tinha levantado, lembrou-se de ir à horta, na parte de trás de casa. Ouviu um barulho e viu um vulto a comer-lhe os figos da figueira. A figura do diabo deitou-se a correr pela rua abaixo, os cascos a baterem no granito da calçada, e desapareceu no meio dos campos. Horas depois, no adro da igreja, Quaresma contou aos outros velhos a visão que tivera de madrugada. “Isso é mentira”, disse-lhe logo um. “É mentira uma merda”, devolveu o antigo bombeiro, vermelho de fúria.

A confirmação de que Quaresma não estava senil chegou poucos dias depois e da pior maneira. Um antigo polícia da terra ia para a horta quando chocou de frente com um touro. Negro como breu. Subiu para cima de um chafariz de pedra para escapar à investida, mas deixou-se cair para o meio de um silvado. Lurdes, a que mataram na junta este ano, foi em socorro do polícia, mas o touro não arredava pé e partiu-lhe o carro todo. Nessa manhã houve tiros, houve gritos e o animal morreu às portas da aldeia, esmagado pela pá de uma máquina empilhadora.

O doutor Neco atendeu o telefone. Prometeu que havia de pagar os estragos do carro e as despesas da hospitalização do polícia. Anos mais tarde, a mulher do agente encontrou o veterinário à porta da junta. “O doutor ainda não nos pagou o hospital”, atirou-lhe a viva voz e à frente de quem quis ouvir. O Neco virou-se para um dos homens que trabalhava para ele. “Dá aí 30 euros à senhora.” Ela, a mastigar ódio, foi rápida a virar-lhe as costas. “Fique com eles.”

PARTE IV, A CHEGADA DA MORTE 
Esta é a história, recente, da vingança da manada do doutor Neco. O pastor ia fazer 61 anos dali a poucos dias. Não que tivesse alguém com quem festejar: divorciou-se, voltou a juntar-se, voltou a separar-se e os cinco filhos saíram da Zebreira à procura de uma vida melhor. O pastor ficou então a viver sozinho numa quinta a 400 metros do lugar da Corujeira, onde vive o patrão, João Folgado, para quem trabalhava há quase dez anos.

Todas as madrugadas, o pastor juntava--se com o vizinho para ordenharem o gado. Só depois saía para o campo com o rebanho das 400 ovelhas. Ao final da tarde, o pastor não apareceu para a contagem dos animais e também não compareceu na manhã do dia seguinte para ir buscar o gado. O patrão foi-lhe bater à porta. Ninguém abriu. Ligou-lhe vezes sem conta para o telemóvel. “Chamava, chamava, mas ele não atendia”, recorda. Fizeram- -se buscas pelos campos com a guarda e os bombeiros, até que, ia o Sol já alto, apareceram as primeiras ovelhas tresmalhadas. Uns metros mais à frente, perto do terreno do doutor Neco, estava o corpo do pastor, ensanguentado. O telemóvel no bolso. Desconfia-se, pelos ferimentos, que foi morto por um dos touros bravos.

Desde a chegada dos animais, e durante dez anos, os dias passaram a ser todos iguais em Segura: assim que a noite caía e as vozes das gentes da aldeia recolhiam a casa, vultos gigantes aproximavam-se do povoado à cata das bolotas dos sobreiros que ladeiam as ombreiras das portas. Atravessavam a estrada nacional que conduz a Espanha – a ponte que marca a fronteira fica a uns escassos metros da povoação –, trepavam pelos muros e subiam ao castelo. Durante uma década, só os corajosos se atreviam a sair de casa a seguir ao escurecer ou antes do amanhecer.

Outras vezes os touros eram vistos na estrada que liga Segura à Zebreira. Desfizeram carros novos, carros velhos e carros assim-assim. Houve acidentes grandes e acidentes pequenos. Conta-se que um espanhol ficou numa cadeira de rodas, que um pastor ficou cego, que outro levou uma cornada que lhe furou as costas. A GNR da Zebreira – o posto mais próximo de Segura – perdeu a conta ao número de vezes que foi chamada porque alguém avistou um touro. Umas vezes os animais eram abatidos, outras afugentados.

PARTE V, A CHEGADA DAS ARMAS
 Este é o começo da história da vitória da aldeia. Há dezenas de processos de moradores contra o doutor Neco no Tribunal de Idanha-a-Nova. Pilhas e pilhas de papéis com matrículas de carros que foram para a sucata, fora todo o tipo de queixas relacionadas com as aparições inesperadas dos touros. O veterinário já chegou a ser absolvido em alguns casos. É aqui que entra na história a célebre e incendiária entrevista que o antigo presidente da junta, José Pinheiro, deu a um jornal regional. Já lá vão uns anos. O autarca, irritado com os prejuízos constantes, terá deixado escapar que o doutor Neco merecia era ser morto. Foi quanto bastou para que o veterinário passasse a recusar-se a ir à quinta. Pediu várias vezes escolta à GNR, por ser “alvo de ameaças de morte”, mas a protecção nunca lhe foi concedida. Em tribunal mostrou cartas anónimas com ameaças, supostamente escritas por moradores de Segura. Por ter medo, dizia, deixou de poder tratar dos animais.

Em Junho, a Câmara de Idanha e a Direcção-Geral de Veterinária pediram ajuda aos campinos da Companhia das Lezírias para capturar os animais, mas só foram apanhados oito – os cavalos não estavam habituados a terrenos tão acidentados. Em Setembro, nova tentativa: foram chamados os militares das operações especiais da GNR para procederem ao abate, mas a acção foi suspensa para reavaliação pelo Ministério da Agricultura.

No início deste mês foi desencadeada uma nova operação, que deveria durar até ao dia 30, mas que deverá estar concluída antes. Só nos primeiros cincos dias de abate foram mortos 117 animais. Conta-se que foi abatido um touro com 800 quilos. A DGV anunciou ontem que já não há touros em Segura. “Uma identificação por helicóptero permitiu observar que quase todos os animais foram abatidos. Só haverá mais dois ou três em zonas recônditas”, explicou o director-geral, Nuno Vieira e Brito. Acabaram-se os touros em Idanha e acabou-se a maior de todas as histórias de vingança da aldeia.

Ionline

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