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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

"Tourada é tortura. Não alimenta nem a barriga nem o espirito sofisticado."

O que é que um blogger de ciência tem a dizer sobre a tourada? Bem, acho que na realidade muita coisa. Sempre tenho defendido que a ciência nos pode ajudar a tomar melhores decisões morais e a fazer melhores escolhas.

E penso que para além da minha opinião pessoal de que a tourada é um espectáculo de horror e crueldade eu posso explicar porque é que ela é um espectáculo horror e crueldade, cuja apreciação requer uma frieza total em relação ao sofrimento do animal. Penso também poder argumentar que essa frieza, essa total desconexão com o que sente o animal, é um legado primitivo e que pessoas sofisticadas deveriam saber fazer melhor. Porque em regra, nós já não precisamos disso, e queremos uma sociedade solidaria com princípios de empatia. Que não podem deixar de se estender, naturalmente em menor grau, aos animais. Por uma questão de consistência e por uma questão de princípio.

Não é de facto muito esperto, mas sente.

Não existem muitos estudos científicos específicos sobre a espécie bovina no que respeita à sua inteligência ou desenvolvimento emocional. Sabemos com segurança que são animais que criam relações familiares. E que são animais sociáveis, e que têm reacções de demonstram empatia, medo, ansiedade, stress, dor, e ligações afectivas. São mamíferos. Têm um cérebro anatomicamente semelhante ao nosso, se bem que mais pequeno, mas ainda assim relativamente grande no contexto do mundo animal. São evolutivamente muito próximos de nós e isso diz-nos qualquer coisa do significado do seu comportamento.

Quem tem vacas como animais de estimação relata que são capazes de ligações afectivas também com as pessoas. (Googlem "Cow Pets"). Algo que é de esperar com um cérebro tão grande e tão semelhante ao nosso. Que é muito maior claro. Mas fundamentalmente tem as mesmas estruturas. Não se confunde com um cérebro de réptil ou de peixe, (embora as diferenças para as aves, se visto ao microscópio,  sejam menos do que se pensava (1) o que pode justificar a grande capacidade cognitiva de animais como os corvos (2).

Existem razões para considerar a empatia, sentir o que o outro esta a sentir, como um dos fundamentos das relações sociais, ou pelo menos um factor motriz. Isso é referido mesmo quando se aborda o assunto da cognição animal, se terão eles empatia ou não (3). Existem estudos e relatos que sugerem que inúmeros animais sentem empatia ((3) ou pro-empatia) e como é de esperar os mamíferos estão bem representados. Não especificamente os bovinos, mas é plausível pelas razões anteriores que assim seja. Lobos que tratam dos velhos e doentes, chimpanzés que reconhecem traços faciais, cães que parece adivinhar o que nós queremos. Existem relatos de que as vacas percorrem grandes distâncias para encontrar os seus bezerros. Mas a empatia intrínseca aos animais nem é muito pertinente. A nossa em relação a eles é que é.
A nossa falta de empatia pelos animais mais inteligentes e emocionalmente desenvolvidos como os mamíferos preocupa-me. Mostra-me que há pessoas que podem ser insensíveis à dor e ao sofrimento, mesmo que ele estejam lá indubitavelmente. Que não têm escrúpulos ao ponto de tirarem prazer da tortura lenta. Dizem que é por ser um animal irracional. Mas o sofrimento, a dor, o stress, estão lá na mesma. Irracional ou não. E no entanto são cegas a isso. Devemos torturar os nossos semelhantes que forem pouco inteligentes? O que dizer de países reais com média de QI de 60? Devemos tratá-los sem escrúpulos? Não acho nada.

Os bovinos são mamíferos. Quando se diz irracional não quer dizer irracional como em "a estrela do mar é irracional", ou "o peixe é irracional". E são emocionalmente mais perto de nós. Cérebros complexos sugerem processos complexos. Repito isto porque talvez a falta de empatia esteja relacionada com a ignorância. A ignorância de que o homem é algo absolutamente diferente dos animais, dotado de uma alma inventada (4) que lhe dará o direito de torturar a seu belo prazer. A ignorância de não ver em outros animais as mesmas sensações que nós temos. Talvez se vissem pudessem perceber que não é o ser irracional ou ser animal que conta. É o reconhecer que essas sensações estão lá. E saber o que elas significam. E dar importância a elas próprias. Para além do sujeito que as sente.

Respeitar os sentimentos.                                        

Quando um touro entra na arena, para onde quer que olhe vê a mesma coisa. O recinto é redondo, algo que ele não consegue compreender. Sente e sofre, mas a inteligência é limitada para compreender um recinto desenhado especificamente para criar este efeito. Fica perdido. O barulho de instrumentos musicais que ele não conhece confunde ainda mais e ajuda ao stress. Adrenalina e cortisol são libertados em altas doses. O sistema nervoso autónomo entra autonomamente em acção. É o pânico. O coração quer saltar da caixa torácica. O cérebro diz para correr ou lutar (fight ou flight (5)). Mas não há para onde ir. E depois aparece um ser humano a provocar.

Raios. A vida é lixada.

Mas não acaba aqui. Mais tarde ou mais cedo, com a ajuda de cavalos, espetaram-lhe tantas farpas nas costas que já perdeu demasiado sangue. Esta cansado. E nunca valeu a penas correr atrás de cavalos em recintos redondos. Só quando estiverem cansados é que há alguma hipótese. Mas eles revezam-se nas artimanhas. Há pegas de caras, mais provocações com o pano, e o sangue continua a escorrer. Menos sangue é menos oxigénio. Menos oxigénio é um cansaço tremendo. E depois eles espetam mais coisas nas costas.

A vida é mesmo lixada.

A força bruta contra a inteligência

O recinto é desenhado para não ter por onde fugir para o bovino mas ter escapatórias para os homens. Permite ainda ao cavalo correr em círculos sem ser encurralado por obstáculos naturais. Está aqui a inteligência da coisa. Claro que o cavaleiro ou toureiro também aprenderam andes de entrar na arena. Nada que vão fazer vai requerer muito da capacidade de reagir em novas situações que é a marca da casa da inteligência.

Por outro lado o touro esta numa situação totalmente nova. A ele, o ser dito irracional, é que se pede que tenha inteligencia. Mas nem pedem isso. Pedem apenas que o seu sistema límbico aprisione todo o cérebro numa resposta de luta, tal como pode acontecer com um humano encurralado.  Ou num paciente com stress pós traumático.

E se o recinto fosse desenhado quadrado, com pequenos becos nos cantos e não disséssemos ao cavaleiro e ao toureiro. E se ensinássemos o touro (sim, eles aprendem) a ignorar a capa e apenas fazer mira ao corpo? E se o ensinássemos a por a cabeça de lado na pega de caras? Mas não disséssemos nada aos "valentes" da pega? Bem, deixem-me adiantar que eu me oporia a isto. É uma experiência de pensamento(6) que eu penso que não precisa de ser executada realmente para servir de argumento.  De que o que está em questão não é bem inteligência. Essa foi usada à algum tempo atrás quando o primeiro recinto quadrado deixou o espectáculo correr para o torto e alguém percebeu que tinha de ser redondo. E quando cortaram as pontas dos cornos também mostraram alguma inteligência. Mas quem copiou... Népia. Nem valentia. Só treta.

Os argumentos a favor da tourada - como refuta-los consistentemente.

A maioria dos argumentos a favor da tourada são apelos à tradição(7). Mas uma coisa não se torna boa só porque é repetida muitas vezes. A sociedade deve evoluir assim como a moral. A antiguidade por si não é um posto. Se não ainda andávamos a levar o pai para morrer no monte e a permitir a pedofilia.

Outra grande quantidade deles são apelos à popularidade (8). Mas só porque muita gente gosta de uma coisa não quer dizer que esteja correto. As coisas têm de ser discutidas e avaliadas por aquilo que são. Se não, dar Cristãos de comer a leões está correto desde que haja um publico a aplaudir (9).

Outros argumentos muito ouvidos são algo como: "também torturas animais para comer" ou "só se deixares de comer é que podes falar". Bem, isto é falso. O que interessa não é o que faz ou deixa de fazer o interveniente da discussão. É se os argumentos são válidos ou não no que respeita ao caso. Se um fumador insistir que fumar faz mal, ele estará a dizer a verdade na mesma, quer fume quer não. E depois, um erro não justifica outro erro. Mesmo que não houvesse uma preocupação crescente com o bem estar animal na pecuária, um argumento do género: "temos muitos problemas logo não vale a pena resolver nenhum" é treta. Se não nunca faríamos nada. Ficávamos sempre infinitamente a resolver o mesmo problema até à perfeição.

E depois parece que pelo menos peixe, ovos e leite fazem falta na nossa alimentação. Não é como abdicar da empatia para desfrutar de um espectáculo de terror. Podemos sim, comer muito, mas muito menos carne, eventualmente deixar mesmo de comer carne de mamífero(10), sem que isso nos prejudique e minimizando o sofrimento animal. Mas mesmo que isto tivesse errado de todo, mesmo que a produção de alimentos fosse algo desnecessário e deplorável na sua essência, não é por isso que não devemos sempre apontar para fazer o melhor possível, seja no que for.

E uma sociedade que respeita os animais, certamente respeitará ainda mais os outros animais de duas patas. Na realidade verifica-se que há alguma correlação entre a preocupação do bem estar animal e o estado socio-económico do pais. Basta ver que países mais ricos que nós proíbem a tourada e têm mais cuidado com os seus animais. Se é porque podem acho bem. Mas a tourada não é porque nós não podemos, como em relação a aspectos da alimentação. É porque não só não queremos. Porque alguns não só não sentem empatia com os bichos como ainda tiram prazer no seu sofrimento.

E é nesta sociedade (em relação a este aspecto) que queremos educar os nossos filhos? É este tipo de mensagem que queremos dar? Que o sofrimento é aceitável desde que se encontre uma explicação ad-hoc, inconsistente com tudo o resto? Desde que se possa dizer que já se faz há muito tempo? Desde que se possa dizer que muita gente gosta? Desde que se possa dizer que é tradição? E que faz parte da identidade de um povo... E têm orgulho nisso? Não arranjam nada melhor com que se identificarem? Tem de ser com um freak show troglodita?

Ouve uma altura em que era preciso matar para viver. Ainda hoje é. Alguns legados da evolução biológica são bons, outros maus. Acho que era altura de dar um passo evolutivo moral mais e abdicar da necessidade de sangue e sofrimento e fazer disso uma regra consistente. Sofrimento? - só o que não puder ser evitado. Infelizmente o mundo não é perfeito. Mas não é por isso que não devemos tentar melhor.

(1) http://universityofcalifornia.edu/sites/uchealth/2010/07/02/human-brains-bird-brains/
(2) http://cronicadaciencia.blogspot.com/2010/01/corvo-aprefeicoa-ferramenta.html
(3) http://plato.stanford.edu/entries/cognition-animal/#EmoEmp
(4) http://cronicadaciencia.blogspot.com/search/label/dualismo
(5) http://en.wikipedia.org/wiki/Fight-or-flight_response
(6) http://plato.stanford.edu/entries/thought-experiment/
(7) http://www.csun.edu/~dgw61315/fallacies.html#Argumentum%20ad%20antiquitatem
(8) http://www.csun.edu/~dgw61315/fallacies.html#Argumentum%20ad%20populum
(9) esta não tive pachorra para encontrar a referencia. :P
(10) http://cronicadaciencia.blogspot.com/2010/09/precisamos-mesmo-de-carne-e-se-for.html

 Leitura sugerida em outros blogues:

 http://ktreta.blogspot.com/2010/09/treta-da-semana-patetico.html 
http://pensamentoalinhado.blogspot.com/2009/06/direitos-dos-animais.html


PS: Tecnicamente existe uma diferença entre sentir e saber que se sente. Ou seja, existe uma diferença entre sentir e ter consciência dessa sensação. Não creio que seja relevante para avaliar crueldade. A dor e o sofrimento estão lá. Também não me parece nada que a consciência seja algo que exista ou não exista. A investigação actual inclui pessoas que consideram haver graus de consciência. Parece-me óbvio que a vaca não tem o grau de consciência do chimpanzé que por sua vez não tem o mesmo grau que os humanos. Mas a proximidade é provavelmente muito maior entre nós e a vaca que entre a vaca e o peixe.

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