24 DE MAIO DE 2009
A indústria tauromáquica em Portugal (assim como noutros países, diga-se) está, mais do que nunca, numa situação de crise de aceitação social e de apoio político (algo que tem cada vez menos, enfrentando cada vez mais oposição e crítica ou, pelo menos, distanciamento), o que tem também reflexos económicos. É, por isso, uma indústria que, mais do que nunca, se encontra em estado de verdadeiro desespero. E, como indústria que é, tem estado a apresentar inúmeras evidências de quão ameaçada se está a sentir, o que teve o seu pico numa primeira manifestação pró-tauromaquia em frente ao Campo Pequeno (a primeira manifestação do género alguma vez feita, que confessou, de forma explícita, quão social e politicamente pressionada está esta indústria). Esta indústria está também a tentar dar respostas aos seus críticos e a preparar contra-ataques para defender a tauromaquia. Isto tem vindo a acontecer, e sabe-se que será intensificado, mas é algo que está condenado ao insucesso, não só porque é uma indústria que desenvolve uma actividade indefensável – a de torturar animais em nome do entretenimento – mas também porque todas as linhas de resposta ou contra-ataque da indústria tauromáquica são ostensivamente inválidas, inúteis e não respondem nem resolvem o problema que se lhes coloca. Numa série de artigos, da qual o presente faz parte, a ANIMAL analisa, individualmente, e com base em factos, na razão e numa ética universal e objectiva, cada resposta / contra-ataque da indústria tauromáquica às críticas que enfrenta.
Como a questão central acerca da tourada se prende com o sofrimento que é infligido aos touros e que constitui a base da crítica às touradas, esta é a primeira questão que os defensores das touradas tentam resolver, nomeadamente defendendo que os touros não sofrem nas touradas.
De acordo com os defensores das touradas, o touro é um animal especial que, como nenhum outro na Terra, tem uma aptidão extraordinária para não sentir sofrimento (ou para sofrer menos) quando é exposto a actos que, tais como aqueles que constituem a prática do toureio, são profundamente invasivos e destrutivos. De acordo com os defensores das touradas, em face destes actos (como o acto de espetar, no dorso dos touros, bandarilhas com ferros pontiagudos e com arpões aguçados nas pontas), os touros têm uma reacção completamente diferente da que teriam todos os outros animais na mesma situação – todos os outros animais sofreriam tremendamente e ficariam profundamente lesionados se sofressem estas agressões, mas os touros, como são, segundo os defensores das touradas, especiais, não sofrem (ou sofrem menos, como alguns dizem).
Há três principais pontos que os defensores das touradas referem para sustentar esta tese. De seguida, apresento estes pontos, assim como as objecções que de imediato levantam.
1) Os touros não sofrem (ou sofrem menos) nas touradas porque foram seleccionados geneticamente para serem especialmente resistentes para virem a ser usados em touradas, pelo que, uma vez nestas, não sofrem.
É interessante notar, desde logo, que, ao declararem que os touros usados para touradas foram seleccionados geneticamente para esse fim, os defensores das touradas estão consequentemente a reconhecer algo de muito importante que põe em causa o “argumento ecológico” a favor da manutenção das touradas: os touros usados em touradas são bovinos domésticos pertencentes a uma das muitas variedades de bovinos que existem, não constituindo, por isso, uma espécie com importância ecológica (embora, evidentemente, cada touro tenha uma importância moral enquanto animal possuidor de dignidade) que já existia na natureza e que importa preservar (embora deva ser dito que é perfeitamente possível preservar esta variedade de bovinos, sendo porém certo que isso só fará sentido se não for para que os membros dessa variedade de bovinos sejam vítimas de tortura em touradas).
Em segundo lugar, a selecção genética destes bovinos não os tornou imunes à dor. Tal não seria sequer possível. A dor é um mecanismo extraordinariamente importante para a sobrevivência de qualquer animal. Se um animal não sentir dor, não evitará o que lhe causará a dor e estará em perigo de vida a todo o momento, não tendo qualquer capacidade de sobrevivência relativamente às muitas ameaças que enfrentará. De resto, é possível desde logo identificar inúmeras evidências comportamentais de que os touros sofrem – basta avaliar o comportamento dos touros em praça, quando estão a ser toureados, e perceber como eles exibem sinais de exaustão, confusão e medo, além de ostentarem ferimentos muito graves, jorrando sangue de forma tremendamente abundante, o que não só os debilita como também são lesões que estão inevitavelmente associadas à experiência da dor (tal como qualquer outro animal, os touros têm um sistema nervoso complexo, tendo, obviamente, terminais nervosos nas zonas onde os ferros são cravados, condição neuro-fisiológica que lhes permite, evidentemente, experienciar o sofrimento físico, e experienciá-lo profundamente, quando são espetados com as farpas).
2) Os touros não sofrem (ou sofrem menos) nas touradas porque, como estão a ser agredidos, no momento em que estão a reagir a essas agressões, estão apenas concentrados em defender-se e contra-atacar, não sofrendo nesses momentos. Alguns defensores das touradas dizem até que o facto dos touros reagirem é a prova de que não sofrem porque, segundo os mesmos, a reacção a uma agressão constitui prova de que o animal agredido não sofre.
Esta alegação coloca, antes de mais, um problema. Os defensores das touradas generalizam sempre a bravura e imunidade à dor como uma características que todos os chamados “touros bravos” terão, afirmando que é o facto de serem “bravos” (o que quer que isso signifique, pois nunca foi definido) que faz com que estes touros, diferentemente de todos os outros bovinos e de todos os outros animais, não sintam dor quando são agredidos. Como resolverão, então, a questão dos chamados “touros mansos”? É bastante comum entrarem em touradas touros que, por muito provocados que sejam, não reagem ou reagem menos. Isto pode dever-se a inúmeros factores, mas não é certamente alheio ao facto de haver diferenças de personalidade entre indivíduos – do mesmo modo que uns cães são mais activos e destemidos e outros cães são mais passivos e mais receosos, isso também acontece com os touros. Porém, isto põe em causa a tese tauromáquica que defende que os “touros bravos” são “animais de combate” sempre preparados para a luta com os toureiros e forcados, uma vez que, afinal, muitos nunca chegam a entrar nesta luta porque não reagem, enquanto outros, que reagem pouco, são toureados mesmo assim mas acusados pelos toureiros e aficcionados de serem “mansos” ou de não serem “bons touros”. A ocorrência deste fenómeno é de tal modo frequente, que, só por si, deita por terra o mito do “touro bravo”.
Mas voltemos à alegação de que a reacção às agressões de que são alvo na tourada indicia que os touros não sofrem. Esta alegação radica numa contradição: por um lado, reconhece que os touros estão a reagir a algo que lhes provocou essa reacção, nomeadamente às agressões de que são alvo quando são espetados com ferros, mas, por outro lado, sugere que essa reacção de defesa e contra-ataque não tem origem em sofrimento. Então – é caso para perguntar –, tem origem em quê? O que levará os touros a reagir e a contra-atacar, se não a dor que lhes foi infligida, os ferimentos que lhes foram causados? Além disso, como é que se pode, plausivelmente, sugerir que o facto de um indivíduo estar a reagir é demonstrativo de ausência de dor e que esse estado de reacção imuniza esse indivíduo à dor? Mais uma vez, aqui temos que lembrar que a dor existe por uma razão – é um instrumento de sobrevivência. E, do mesmo modo que é a dor que leva um animal a evitar situações que lhe possam causar dor, é também a dor que leva esse mesmo animal a, uma vez que uma situação lhe cause dor (tal como uma agressão), ele reaja contra o agressor (o toureiro) para evitar mais agressões. Isso acontece muito claramente nas touradas, sendo, além do mais, comum ver touros a tentarem livrar-se dos ferros que lhes são cravados e a produzirem sons típicos de manifestação de dor quando os toureiros lhes espetam as farpas. Os touros reagem, de facto, uns mais, outros menos, mas eles reagem a algo e por uma razão – reagem à agressão e à dor que a agressão lhes causou e reagem para não serem mais agredidos e numa tentativa de se livrarem do que lhes está a causar tanto sofrimento. E só os defensores das touradas é que parecem não perceber esta evidência.
3) Os touros não sofrem (ou sofrem menos) nas touradas porque, nas touradas, se gera uma reacção hormonal especial que fará com que eles, durante a lide, fiquem quase ou totalmente imunes à dor.
Esta ideia, que já era defendida há muito tempo nos meios tauromáquicos, ganhou um corpo aparentemente mais forte quando, recentemente, um professor de medicina veterinária da Universidade Complutense de Madrid, Juan Carlos Illera, anunciou ter estudado o comportamento hormonal dos touros usados em touradas para concluir, segundo o mesmo, que, nas touradas, os touros sofrem muito menos e sentem muito menos stress do que, imagine-se, sentirão quando são transportados das ganadarias para as praças de touros e quando são mantidos nos curros das praças de touros sem chegarem a ser toureados. Ou seja, segundo Illera, os touros sofrem mais quando não lhes é infligida dor (no transporte e nos curros) do que quando lhes é infligida dor (na lide) porque, segundo o mesmo, ao serem bandarilhados, os touros têm reacções hormonais que os tornam quase completamente insensíveis à dor e livres de stress. Importa dizer, em primeira instância, que este estudo nunca foi publicado em qualquer revista científica nem nunca foi revisto por veterinários independentes – foi apenas publicado parcialmente em revistas tauromáquicas e citado em congressos de tauromaquia. Em segundo lugar, o professor Illera nunca respondeu às perguntas que recebeu de outros médicos veterinários que lhe dirigiram perguntas muito específicas acerca das muitas perplexidades que o dito estudo levanta. Em terceiro lugar, tudo o que deste estudo foi tornado público e tudo o que foi possível perceber do mesmo, de como foi feito e de como se chegou às conclusões que apresentou, foi meticulosamente analisado e rebatido pelo também médico veterinário espanhol José Enrique Zaldivar. Zaldivar foi uma das pessoas que enviou questões a Illera e que nunca recebeu resposta do autor do estranho “estudo”. Fê-lo por várias vezes e esperou muito tempo, mas apenas para ficar sem resposta. O tal estudo nunca foi inteiramente tornado público e continua, até hoje, sem ser publicado em qualquer revista científica. E, entretanto, José Enrique Zaldivar escreveu o extenso artigo “Porque é que o touro sofre” (em resposta ao artigo de Illera intitulado “Porque é que o touro não sofre”), no qual demonstra os erros cometidos por Illera para chegar à inválida conclusão de que os touros quase não sofrem durante a lide tauromáquica. Zaldivar enviou este artigo a Illera, mas novamente não recebeu resposta. Convém dizer que, no meio académico, mensagens educadas com perguntas cientificamente legítimas enviadas por colegas só ficam sem resposta quando quem recebe as perguntas não sabe ou não quer responder (ou então se for mesmo muito mal educado). Neste caso, parece tratar-se de ambos os cenários.
Quanto às conclusões de Illera e às objecções que Zaldivar levantou às mesmas, apresento-as sinteticamente de seguida. Illera afirmou que, ao contrário dos touros que foram transportados da ganadaria para a praça, que foram mantidos nos curros e que chegaram a entrar na praça mas não chegaram a ser picados nem toureados (que apresentaram, segundo Illera, sinais elevados de stress e de sofrimento), os touros que não só foram expostos a estas situações mas que foram também, além disso, picados pelos “picadores” na sorte de varas e de seguida toureados apresentaram, nas medições hormonais que lhes foram feitas, sinais muito menores de stress e de sofrimento do que os touros que não foram toureados. Ora, Zaldivar explica por que razão é que essa estranha conclusão foi possível e porque é que ela é inválida. É que Illera tratou os resultados das avaliações hormonais de touros com graves lesões neurológicas (causadas pelos “picadores” e, depois, pelas farpas) segundo padrões normais – só que, como explica Zaldivar, tal não pode legitimamente ser feito, visto que os touros não estão em condições normais para poderem ser avaliados hormonalmente, nomeadamente porque o tipo de lesões que são causadas aos touros em touradas fazem com que as medições hormonais deles depois de sofrerem essas lesões – estando eles com estruturas neurológicas gravemente destruídas – não reflictam o seu actual estado de saúde física e/ou mental, fazendo também com que certamente não reflictam o sofrimento que os animais estão a experienciar e a capacidade que têm e continuam a ter para experienciá-lo. Para melhor se compreender estas questões e quão hábil e racionalmente Zaldivar deitou por terra as conclusões do dito “estudo” de Illera, vale a pena ler o artigo de Zaldivar (se o quiser ler, por favor contacte campanhas@animal.org.pt).
Há ainda alguns defensores das touradas que optam por respostas menos comuns e ainda mais frágeis do que as acima descritas.
A primeira é a de que os ferros usados em touradas ferem tanto os touros e provocam-lhes tanto sofrimento quanto as lâminas de barbear ferem os homens quando se cortam ao fazer a barba. Claro que, neste caso, os defensores das touradas ignoram ou pretendem que se ignore um elemento muito importante: a proporção. Obviamente, as dimensões de uma lâmina de barbear em relação à superfície da face de um homem que esta poderá cortar são incomparáveis às dimensões dos ferros que são cravados no dorso dos animais – sendo que os ferros podem ter até 8cm de comprimento e têm arpões incorporados que podem ter até 4cm de comprimento, sendo cravados e ficando espetados no corpo dos animais, enquanto a lâmina de barbear provoca apenas um pequeno corte e não fica espetada na pele de um homem. Obviamente, os ferros usados em touradas geram lesões de longe mais profundas e graves nos touros (e consequentemente geram um sofrimento muito maior), do que uma lâmina de barbear mal usada pode gerar na face de um homem com um golpe meramente superficial. Esta afirmação é tão absurda, que cedo se tornou impopular mesmo entre os defensores das touradas embora ainda haja quem a use.
A segunda reporta-se à ideia de que o sofrimento faz parte da vida – dos animais e dos humanos. Neste contexto, é comum encontrar defensores das touradas a defender que o sofrimento é uma experiência comum nas suas vidas. Sofrem quando têm que fazer viagens longas, sofrem quando estão doentes, sofrem quando perdem alguém, etc., pelo que sofrer é algo de natural e não deve constituir razão para criticar algo, nomeadamente as touradas. Neste caso, os defensores das touradas fazem uma confusão demasiadamente conveniente entre sofrimento provocado e sofrimento não-provocado. Quando sofremos – ou, melhor, quando nos sentimos desconfortáveis – por fazermos viagens demasiadamente longas, esse é um desconforto que nós não procuramos mas que aceitamos como implicação da necessidade ou do interesse em fazer uma viagem longa. Mas aceitamo-lo apenas condicionadamente: tentamos preveni-lo e aliviá-lo o mais possível, nomeadamente fazendo paragens, dividindo a viagem por partes, utilizando um meio de transporte mais confortável, etc. É, além disso, um desconforto superficial e não uma forma de sofrimento profundo, como é aquele que é causado aos touros em touradas. Por outro lado, quando estamos doentes, o sofrimento que experienciamos é, mais uma vez, não-provocado. Nem queremos ou procuramos estar doentes, nem nos conformamos com isso. Tentamos prevenir as doenças, o sofrimento e mau-estar que nos causam, e, quando ficamos doentes, tentamos curar-nos da melhor e mais rápida maneira possível. Do mesmo modo, quando perdemos alguém que nos é querido, não só escolheríamos sempre não perder esse ente querido e fazer tudo o que pudéssemos para salvá-lo e tê-lo connosco, como também ficamos profundamente transtornados por essa perda – mas tentamos encontrar uma maneira de lidar com ela e com o sofrimento que nos causa. Procuramos o apoio de outras pessoas que nos são queridas, tentamos adoptar uma visão positiva e adaptar-nos a essa perda e, nos casos mais extremos, poderemos recorrer a ajuda de profissionais para lidar com uma eventual depressão que sintamos em resultado dessa perda. O que é certo é que, neste caso como em todos os outros, não procuramos o sofrimento e não o acolhemos passivamente, por muito natural que ele seja – tentamos sempre preveni-lo e, quando ele se abate sobre nós, tentamos aliviá-lo e fazê-lo desaparecer. Nas touradas, o caso é completamente diferente. É provocado sofrimento severo aos touros. Sofrimento que em circunstâncias normais não sofreriam, sofrimento que nunca procuraram, sofrimento que, na verdade, faria com que fugissem, se pudessem, sendo evidente que os touros, nas touradas, tentam por todas as maneiras evitar o que lhes causa o sofrimento e tentam defender-se, embora em vão. Não têm qualquer hipótese de prevenir esse sofrimento que não escolheram, não têm como evitá-lo nem têm como acabar com as causas desse sofrimento ou curar-se. Nem têm quem os ajude – só têm quem, depois de lhes causar tanto sofrimento e tão graves lesões, acabará por levá-los para um matadouro, onde serão mortos depois de tanta agonia.
Conclui-se, então, que, para os touros, sofrer em touradas é infelizmente uma realidade mas não é uma inevitabilidade. É algo que só acontece porque uns lucram e outros divertem-se a provocá-lo. E isso é tão condenável e objectivamente inaceitável, que deve levar à total abolição da tauromaquia.
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