sábado, 4 de agosto de 2012

A Presumível Raça de Lide

Luis Gilpérez Fraile
Vice-Presidente da ASANDA

Desaparecerá a raça de lide quando acabarem as touradas?

Aqui está uma pergunta que nós defensores dos animais fazemos a nós próprios muitas vezes , e que com um tom acusatório , nos fazem os aficionados como parte da argumentação para defender a sua indefensável afição. Para nos darmos, e poder dar uma resposta razoável, em primeiro lugar temos que partir da premissa será verdade que existe o chamado “touro de lide” como raça animal, se a resposta for negativa, a afirmação “sem touradas não há touros” carece de sentido, já que não pode desaparecer o que não existe. Porém, não adiantemos conceitos, porque senão ver-nos-emos envolvidos num emaranhado de vocábulos tais como “espécie”, “raça”, “variedade”, “casta”, etc, sem saber bem do que estamos a falar, que é ao fim e ao cabo o que fazem os aficionados.

CONCEITOS BÁSICOS DE TAXONOMIA

O “nome e apelido” de qualquer animal é definido pela zoologia, pelo seu género e espécie *1*. Todos os animais que pertencem a um mesmo género têm em comum uma série de características semelhantes (características genéricas). Logo, todos os animais pertencentes ao género canis, como o cão e o lobo têm características comuns suficientemente óbvias (é este o caso) mas também características diferenciadoras *2*. Por tal, o primeiro pertence à espécie familiaris (canis familiaris) e o segundo à espécie lupus (canis lupus) *3*. Com os bovinos sucede o mesmo: a vaca e o zebu pertencem ao género Bos, porém a primeira é da espécie taurus (Bos taurus) e o segundo é da espécie indicus (Bos indicus). Podemos portanto, dizer em termos gerais, que os animais de uma mesma espécie , além de terem as características genéricas próprias, se assemelham entre si tantos como os seus pais, e distinguem-se das demais espécies do mesmo género, e se reproduzem entre si originando descendentes fecundos.
Porém ocorre com muita frequência , que grupos de animais de uma mesma espécie apresentem entre si características quer permitem claramente diferenciá-los (por exemplo , todos os cães são da mesma espécie, porém é possível diferenciar claramente um caniche de um mastim).
Neste caso estamos perante um facto que obriga a categorias inferiores dentro das espécies: são as espécies politípicas. E são nestas subdivisões que as normas taxonómicas se apresentam mais obscuras: as espécies podem dividir-se em sub-espécies e ou em variedades, e estas em sub-variedades ou biótopos. O uso do sinónimo “raça” por “variedade” é frequente e correcto. Continuando com o nosso exemplo canino, um galgo seria um Canis familiaris de raça galgo.
Estas normas taxonómicas, um tanto simplificadas para facilitar a sua compreensão, não têm outro objectivo para os nossos propósitos senão dar uma ideia de conjunto.

Porém é importante assinalar que as características que permitem classificar um grupo de animais dentro de uma mesma raça devem cumprir inexoravelmente as seguintes regras:
a) Que sejam diferenciadores face às demais raças da espécie (as características que aparecem numa raça não servem para descrever outra).
b) Que sejam estáveis, no sentido de confirmarem e perpetuarem com a descendência (uma característica que possa não aparecer nos descendentes, não serve para descrever uma raça).
c) Que sejam susceptíveis de descrição cientifíca (uma caracaterística como “proporcionado” não é válida para marcar uma característica própria de uma raça, pois é uma apreciação subjectiva).

Enquanto que c) é uma regra de racional, a) e b) são não só por conceito cientifíco, mas também por definição semântica do vocábulo “raça”: Cada um dos grupos em que se divide uma espécie orgânica , formada por indivíduos que têm certas características comuns que os distinguem dos outros de outros gupos da mesma categoria e que se transmitem por herança. (Maria Moliner)

Não há dúvida que estas regras se aplicam perfeitamente ao nosso exemplo canino, mas será que se aplicam também aos Bos taurus que se utilizam na lide ?
Antes de dar resposta , permito-me esboçar a origem e evolução dos ditos animais.

A ORIGEM DOS ACTUAIS TOUROS DE LIDE

O seu mais antigo predecessor conhecido é o Bos planitrons que viveu durante o plioceno (final do terciário). Dele descendem pelo menos duas espécies: o Bos primigenius (o uru europeu) e o Bos namadicus (o uru afroasiático) o Bos primigenius cruzado possivelmente com alguma espécie de cornos curtos, aparece entre 10000-8000 a.c e o Bos taurus actual, o qual começa a diversificar-se de tal forma, que já no Neolítico ( cerca de 4.000 anos a.c.) se conheciam pelo menos três espécies. A partir de então e devido à sua domesticação, sofre constantes cruzamento, muitas vezes com a intervenção do homem, que procura variedades para carne, trabalho e leite. E para não remontarmos muito mais atrás, já nos encontramos na Espanha do séc. XIV, onde se encontram dados que os touros para a lide se comprar aos carniceiros *4*, os quais, devido ao seu ofício conhecem os touros que se mostram mais bravos de entre as vacadas que comercializam. Quer dizer, escolhem-se exemplares de raças criadas para carne, não para a lide. Entre estas raças espanholas eram frequentes a Berrenda, a Cárdena, a Salmantina, a Retinta, etc. São todas raças pertencentes à espécie Bos taurus, com características fixadas ao longo de séculos ou mesmo milénios.
Porém alguns ganadeiros apercebem-se que criar reses para a lide pode ser tão rentável ou mais do que para carne, e em meados do séc. XVIII começam a aparecer as primeiras ganaderias de touros para lide. Estes vaqueiros, seleccionam e cruzam as raças ao seu alcance e começam a produzir touros condenados desde o nascimento à lide. Criaram por isso uma nova raça de Bos taurus ? Agora estamos de novo no princípio.

EXISTE A RAÇA DE LIDE ?

Sinceramente, a resposta é NÃO, e podemos argumentar sobre o assunto.
Recordemos que para poder definir uma raça são precisas cumprir três regras, basta que uma delas, uma só não se cumpra, para não se poder falar em raça. Pois bem, o denominado gado de lide, não cumpre nenhuma das três:

a) Não existem características morfológicas próprias dos touros da hipotética raça de lide, já que estas (as características morfológicas dos touros de lide) são idefiníveis por díspares. Descreva-se qualquer exemplar de qualquer ganadaria das que criam touros para lide, e poder-se-á comprovar que tal descrição não é aplicável a outros exemplares de outras ganadarias que criam exemplares com o mesmo fim *5*. Tão pouco existem características diferenciadoras definíveis entre os touros da hipotética raça de lide face a outras raças da mesma espécie.

b) As características psicológicas diferenciadores, que se supõem na hipotética raça de lide (principalmente a difícil definição de “bravura”) não parecem perpetuar-se de forma regular com a descendência, a ponto de a imensa maioria carecer dela. Segundo denunciam os próprios tauromáquicos. Aliás se assim fosse, a prova de bravura, seria desnecessária e todos os touros nascido de pais “bravos” seriam igualmente bravos. Tão pouco parecem perpetuar-se as características morfológicas: observando fotografias de exmplares de touros bravos de épocas distintas, inclusivé das mesmas ganadarias, pode observar-se que apresentam características morfológicas muito diferentes.

c) Não conhecemos uma única descrição científica das características diferenciadoras da hipotética raça de lide. E isto, apesar de ter consultado uma ampla bibliografia. A razão é a seguinte: não se pode descrever o que não existe. E, tanto assim é que nem o próprio Regulamento de Espectáculos Tauromáquicos a descreve, limitando-se a proibir que se lidem reses que não estejam inscritas no Registo de Empresas Ganadeiras de Reses de Lide, e que as mesmas tenham as caracterísitcas zootécnicas da ganadaria a que pertencem *6*.

Pelo exposto, pode dizer-se que a raça de lide só existe como ideia ou objectivo a alcançar pelos ganadeiros interessados, e mesmo aceitando que existe um fenótipo *7* ideal, o qual não é certo tanto no conceito de “touro de lide”, tanto no aspecto morfológico, como no psicológico, este vem mudando ao longo dos tempos de acordo com as modas tauromáquicas de cada momento.
A afirmação que não existe raça de lide, não é evidentemente só nossa. Por exemplo, aquele que é possivelmente o mais completo e documentado estudo publicado sobre as raças autóctones espanholas *8*, diz sobre o assunto: “O gado de lide constitui em Espanha uma população bovina heterogénea que é bastante duvidosa integrar numa raça, já que a única caracterísitca comum que se pode assinalar é a sua capacidade para mostrar um temperamento agressivo, a que os aficionados da tourada chamam bravura…Por isso, é duvidoso integrar esta diversa população bovina dentro do conceito de raça”.

O QUE SÃO ENTÃO OS TOUROS DE LIDE ?

É indiscutível e já o assinalamos anteriormente que as actuais raças bovinas espanholas são o resultado de cruzamentos com outras raças mais antigas, e estas o resultado de cruzamentos e ou diversificação de espécies ainda anteriores. Quer dizer que num dado momento se partiu de animais mestiços até que as suas características (aquelas que os seus “criadores” consideraram idóneas para os seus fins) se fixaram por selecção artificial para dar lugar a uma raça propriamente dita. A razão pela qual as características das raças autóctones se fixaram e as dos touros de lide não, têm que se procurar não já no tempo que necessariamente tem que transcorrer para que ela ocorra ( com mais de dois séculos houve tempo suficiente para tal), mas sim nos próprios interesses do negócio taurino.
Se desde um primeiro momento (ou inclusive em tempos posteriores) se tivesse decidido o prótotipo do touro que se queria alcançar, seguramente que hoje existiria uma raça de touros de lide. Porém, as modas e os interesses conduziram a que os gandeiros continuassem mestiçando continuamente *9*, de forma a que os touros de lide de hoje não se parecem com os de ontem, estes com os de anteontem, e tão pouco se parecerão com os de amanhã se se continuar pelo mesmo caminho.
Finalmente: os touros de lide actuais não são senão animais mestiços que não pertencem a nenhuma raça determinada, e só para fixar um conceito que sirva de referência, permito-me defini-los da seguinte forma “animais pertencentes a diversas pseudo-raças de Bos taurus, com a característica frequente, indefinível cientificamente, de manifestar uma agressividade instintiva quando acossados”, característica que repartem com muitas outras espécies e inclusive com exemplares de outras raças bovinas.

SÃO SINCEROS OS AFICIONADOS QUANDOS E PREOCUPAM COM A SUA POSSÍVEL DESAPARIÇÃO ?

É evidente que aos aficionados o que os preocupa é o desaparecimento das touradas, não dos touros: os simples aficionados porque perdiam o seu divertimento; os outros – ganadeiros, críticos , matadores, etc. – porque perdiam o seu negócio. Porém, nem a uns nem a outros, lhe interessa a sorte das pseudo-raças de lide. E para fazer esta afirmação baseio-me nos seguintes factos:

a) Muitas pseudo-raças perderam-se e muitas outras se perderão, de forma provocada, e quanta a essas eles não preocupam *10*.

b) Várias raças bovinas autóctones (verdadeiras raças) desapareceram nestes últimos anos (campurriana , pasiega, lebaniega, etc) e muitas outras encontram-se em perigo eminente de extinção ( albera, blanca cacereña, cachena, murciana, etc.) e não são os aficionados que reclamam a sua protecção.

DESAPARECERÃO AS PSEUDO-RAÇAS QUANDO ACABAREM AS TOURADAS?

Os touros bravos não existem porque existem touradas, antes pelo contrário: as touradas existem porque existem touros bravos.

Recordemos que os primitivos ganadeiros de bois, tentaram durante séculos erradicar essa característica brava do seu gado, seleccionando os animais mais mansos e consequentemente mais manejáveis.

E assim, no séc. XVIII os primeiros ganadeiros de reses de lide encontraram-se a braços com exemplares cujo gene de bravura não tinha desaparecido. Todavia hoje existem exemplares entre as ganaderias de touros de carne que manifestam uma agressividade instintiva quando provocados ou acossados *11*. Não se duvide pois que este carácter se perpetuará ainda durante muito tempo de forma natural, sobretudo se não se tentar seleccionar em sentido contrário.
Portanto é primordial conservar as raças bovinas autóctones espanholas, verdadeira riqueza zoológica e zootécnica do nosso país, em vez das pseudo-raças de lide. Calcula-se que 32% encontram-se em eminente perigo de extinção e 38% em perigo moderado de extinção *12*.

Quanto às pseudo-raças de lide, com um valor ecológico muito menor que as anteriores, a sua sobrevivência às touradas é um simples problema de vontade. Haveria que decidir que fenótipos se desejam perpetuar para impedir que os ganadeiros continuem a fazê-los desaparecer. Não esqueçamos que o próprio negócio tauromáquico é o seu pior inimigo. Uma vez estabelecidas as características diferenciadoras da raça de lide, só deveriam estar inscritos no livro genealógico de raça bovina de lide os exemplares que as tivessem e em pouco anos já se poderia falar de raça de lide.
E existindo uma raça de lide, a sua protecção em herdades para o efeito seria económico e simples. Muito mais que a protecção a outros animais em perigo de extinção (linces, lobos ou ursos *13*) se tem mostrado possível.

E também não podemos esquecer que sem ser utilizados para a lide, as actuais pseudo-raças de lide são economicamente rentáveis como produtoras de carne, ou pelo menos tão rentáveis como muitas raças espanholas de criação intensiva *14*. Quer dizer, são uma verdadeira alternativa de produção em terras que não permitem manter outras raças mais delicadas, embora o seu manuseamento seja mais complicado.

Em resumo: as pseudo-raças de lide não têm que desaparecer se se acabar com as touradas, e não há dúvidas que quem agora advoga a sua abolição, serão os que a partir de então lutarão pela protecção de tão belos e magnifícos animais.


NOTAS

*1* È a chamada nomenclatura binominal . Consiste em duas palavras latinas das quais a primeira se escreve em maiscúlas e designa o género, e a segunda em minuscúlas e designa a espécie. Estas normas internacionais estão reconhecidas no Código Internacional de Nomenclatura Zoológica.
*2* Não tanto, como por exemplo entre o lobo e a raposa e o cão e a raposa. É por isso que as três espécies pertencem a uma mesma família (a dos canídeos), porém só o cão e o lobo são do mesmo género (a raposa pertence ao género Vulpes).
*3* A espécie é a mais representativa das categorias taxonómicas, e pode ser definida como “um conjunto de população natural que pode cruzar-se entre si, real ou potencialmente” (Mayr”. Em linguagem comum, a espécie designa-se por um substantivo concreto: cão, lobo, vaca, etc.
*4* Por exemplo em 1478, em Sevilha houve uma tourada “oito dos quais se compraram ao carniceiro Juan Ruíz , pagando 2.500 maravedís cada um” (Los Caireles de Oro, de Pascual Millán).
*5* A descrição normal de uma raça bovina inclui pelo menos a altura, peso médio, proporções, forma da cabeça, cornadura, pelo e cores. Como qualquer um pode comprovar , todas estas caracterísiticas são muito diferentes nos touros criados para lide. Para muito autores tauromáquicos, as características diferenciadoras dos touros de lide não são morfológicas, genéticas ou fisiológicas , mas sim psicológicas. Por exemplo para Filiberto Mira um touro de lide é aquele que tem uma “saída alegre e rápida do curro, vai ao encontro nos três esconderijos, dobra humilhado e no percurso ao ser toureado com a capa….etc”. Estes critérios são taxonomicamente inaceitáveis. Outros como Manuel Prieto y Prieto, assinalam aquelas que devem ser as características tipo das raças vacuns de lide, porém terminam como recomendação para as distinguir “os sinais ou marcas e as divisas”
*6* Há que assinalar que “características zootécnicas “ é um disparate semântico: zootecnia é “o conjunto de conhecimentos relativos à criação de animais domésticos e a prática desses conhecimentos”, portanto “características zootécnicas” não tem sentido. Também é de assinalar que para se inscrever no registo de Empresas Ganadeiras de reses de lide, não se exige ao interessado que conte com as reses da vaca de lide, mas sim com as reses inscritas no livro genealógico da raça bovina de lide, na qual se inscrevem as reses pertencentes às ganadarias de reses de lide. Uma pescadinha de rabo na boca, precisamente por não se poder definir cientificamente as características da hipotética raça de lide.
*7* Fenótipo: conjunto de propriedades genéticas, estruturais e funcionais de um organismo.
*8* Miguel A. Garcia Dory, Silvio Martinez Vicente e Fernando Orozco Piñan, Guía de Campo de las razas autóctonas españolas (Madrid, editorial : Alianza Editorial, 1990), 228.
*9* É do conhecimento geral que as “figuras “ do toureio escolhem ou vetam ganadarias consoante os touros se acomodam ou não à sua forma de tourear. E isto já acontece desde o aparecimento das primeiras ganadarias de touros de lide , sendo famoso o memorial escrito por Illo e Costillares (dois famosos matadores do séc. XVII) exigindo à autoridade que não comprasse touros da raça castelhana para os espectáculos onde iriam actuar. Estas exigências das “figuras” têm levado os ganadeiros a produzir touros ditados pelas modas.
*10* A tal ponto que das oito pseudo-raças do séc. XVII (dez, segundo outros autores) – e por pseudo-raças originárias referimo-nos às 8 ou 10 ganadarias que começaram a criar touros com a finalidade exclusiva de os dedicar à lide, e que estavam formadas por exemplares de raças autóctones espanholas – não há hoje uma só ganadaria que conserve exemplares que não sejam mestiços: quer dizer desapareceram todas. Pode mesmo afirmar-se que de algumas daquelas, até o sangue dos seus descendentes se extinguiu nas ganadarias que os tinham: por exemplo da vazqueña, da raso-portillo da jijonesa, etc.
*11* Tanto assim é, que em muitas festas populares, até à entrada em vigor do novo Regulamento Tauromáquico – que o proíbe para zelar pelos interesses dos poderosos ganadeiros de touro bravo – , vinham-se utilizando touros de ganadarias de carne, os quais, se eram bem escolhidos mostravam tanta bravura como os criados como bravos.
*12* Na actualidade restam 27 raças bovinas autóctones espanholas. De 9 delas restam menos de 1000 exemplares. Dados certos indicam que pelo menos 4 raças já desapareceram.
*13* Os ursos foram utilizados em Espanha, durante séculos e até ao séc.XX em espectáculos tauromáquicos. Abolida esta dita “manifestação cultural, os ursos não desapareceram.
*14* O rendimento da carne das reses de ganadarias de lide anda á volta de 57%. As de carne de pastagem, á volta de 55%.

Fonte

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