terça-feira, 11 de março de 2014

Machado de Assis e as touradas


Proteção aos animais é dimensão pouco conhecida de Machado de Assis 

Em 15 de março de 1877 os leitores da revista carioca Ilustração Brasileira se depararam com uma crônica, escrita por Machado da Assis, que trazia a seguinte provocação:

“O certo é que se eu quiser dar uma descrição verídica da tourada de domingo passado, não poderei, porque não a vi. [...] Não sou homem de touradas; e se é preciso dizer tudo, detesto-as.

Um amigo costuma dizer-me: –Mas já as viste? –Nunca! – E julgas do que nunca viste? Respondo a este amigo, lógico, mas inadvertido, que eu não preciso ver a guerra para detestá-la, que nunca fui ao xilindró, e todavia não o estimo. Há coisas que se prejulgam, e as touradas estão nesse caso.”

Mesmo afirmando que não assistia a touradas – última moda no Rio de Janeiro do Segundo Império – Machado demonstrou ter plena consciência do grau de crueldade que envolvia a “diversão”.

Ao invés de descrever detalhadamente em suas crônicas o “grande” evento chamado tourada, Machado optou por problematizar a nefasta experiência. Escreveu ele:

“E querem saber porque detesto as touradas? Pensam que é por causa do homem? Ixe! É por causa do boi, unicamente do boi. Eu sou sócio (sentimentalmente falando) de todas as sociedades protetoras dos animais. O primeiro homem que se lembrou de criar uma sociedade protetora dos animais lavrou um grande tento em favor da humanidade; [...].”

Quando menciona as sociedades protetoras dos animais, Machado de Assis estava possivelmente se referindo ao movimento iniciado na Inglaterra em 1824 com a fundação da Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals e que, desde então, vinha tendo vários desdobramentos em países da Europa e nos Estados Unidos. Ele chamava a atenção sobre ações internacionais para refletir sobre a realidade brasileira.

A partir de um tema que para muitos era considerado banal, como as touradas, Machado lembrava aos leitores que, entre várias outras instituições que não funcionavam ou nem existiam em terras brasileiras naquele período, estaria aquela, voltada aos animais.

De forma irônica, indagava: “Não digo que façamos nesta Corte uma sociedade protetora de animais: seria perder tempo. Em primeiro lugar, porque as ações não dariam dividendo, e ações que não dão dividendo...Em segundo lugar,  haveria logo contra a sociedade uma confederação de carroceiros e brigadores de galos. Em último lugar, era ridículo. Pobre iniciador! Já estou a ver-lhe a cara larga e amarela com que havia de ficar, quando visse o efeito da proposta! Pobre iniciador! Interessar-se por um burro! Naturalmente são primos? – Não; é uma maneira de chamar a atenção sobre si. – Há de ver que quer ser vereador da Câmara: está-se fazendo conhecido. –Um charlatão. Pobre iniciador!”

Ao declarar-se sócio, “sentimentalmente falando”, de todas as sociedades protetoras dos animais, o escritor chamava também a atenção para o fato de que, no Brasil daquele período, mesmo que alguém quisesse tornar-se sócio “efetivo”, seria impossível, porque não existia nenhuma entidade semelhante em todo o território nacional.

As sociedades protetoras dos animais chegaram muito tardiamente ao país. Foi só em 1895 que surgiu a primeira organização do gênero: a União Internacional Protetora dos Animais (UIPA), com sede na cidade de São Paulo. Não deixa de ser sintomático ter sido São Paulo a iniciar o movimento no Brasil. A cidade, naquele período, experimentava um intenso processo de transformações urbanas, socioculturais e científico-tecnológicas que tiveram impactos profundos sobrea vida dos animais. Isso não significa que não houvesse, em outros locais do país, crueldades, maus tratos,abandono e exploração dessas criaturas. Assim, o que não significa que não existissem manifestações contra essas atitudes, Machado de Assis, no Rio, é um dos exemplos dos mais ilustres e esclarecedores.

As primeiras referências sobre a presença de sociedades protetoras dos animais no Riode Janeiro também podem ser encontradas em outra crônica de Machado, publicada em1889, no jornal Gazeta de Notícias, em que simula a narração de um diálogo entre ele e uma personalidade não identificada. Nessa conversa o escritor comenta sobre o caráter ainda precário dessas iniciativas no Brasil e as condições lamentáveis em que viviam os burros que puxavam carroças e bondes, além dos cães abandonados na cidade.

Quase 50 anos depois, em 1943, mais exatamente em 27 de abril, a Sociedade União Internacional Protetora dos Animais (Suipa), oficialmente iniciava suas importantes atividades no Rio de Janeiro. De sua longa história fizeram parte pessoas como o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade e a romancista cearense Rachel de Queiroz.

Como eles, Machado de Assis muito provavelmente continuaria sendo defensor dos animais e se manteria simpático e ao mesmo tempo crítico a todas as sociedades protetoras que viessem a existir. Mas, mais que tudo, o criador do inesquecível cão Quincas Borba talvez ficasse perplexo e sensibilizado com os milhares de sócios, voluntários e simpatizantes que, com incansável luta e esperança, continuam enfrentando diariamente os mais difíceis desafios para proteger os animais. E para que essas sociedades continuem existindo em praticamente todas as regiões do planeta.

Machado talvez tenha sido o primeiro grande escritor brasileiro a se preocupar, em vários e tocantes momentos de sua obra, com o destino reservado aos animais. Um sublime exemplo e ser seguido e jamais esquecido.

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