Em Portugal as touradas de morte foram proibidas no tempo do Marquês de Pombal ao mesmo tempo que a pena capital foi definida para os criminosos, por motivos do falecimento de figuras de relevo nestes espetáculos (o que ainda acontece em Espanha com alguma frequência). Em 2002 a lei foi alterada para permitir os touros de morte em locais justificados pela tradição, como na vila de Barrancos.
Antes de entar na arena, os touros são mantidos nos curros, para onde são conduzidos com aguilhões e à paulada, e onde os seus chifres são serrados a sangue frio para serem embolados.
Factos:
Ao entrar na arena, os touros vão já fortemente enfraquecidos e feridos (devido aos chifres serrados a sangue frio antes da tourada), além de apavorados. O pânico do touro é tão grande, que fugiria deste cenário aterrorizador, se tivesse essa possibilidade.
É possível observar a expressão de medo e de confusão nos touros sempre que estes entram na arena, e que se agrava quando a tortura da tourada se acentua, à medida que as bandarilhas e os restantes ferros (que podem ter comprimentos variáveis entre os 8cm e os 30 cm, além de terem afiados arpões na ponta, para se prenderem à carne e aos músculos dos animais) rasgam os seus tecidos, provocando-lhes um sofrimento atroz, além de febres imediatas, acrescidas de um enfraquecimento acentuado pela perda de litros de sangue.
A Tourada em detalhe:
Todo o decorrer da chamada corrida de touros à portuguesa consiste na “lide” de seis touros, habitualmente. Cada um dos touros é toureado por um cavaleiro tauromáquico, que lhe crava entre quatro a oito ferros compridos com grandes e afiados arpões na ponta. Os touros podem alternativamente ser “lidados” por um toureiro a pé (embora isto seja menos comum nas touradas portuguesas), que crava repetidamente as aguçadas bandarilhas no dorso do touro. Seguidamente, é comum entrar em cena o bandarilheiro, que vem cansar ainda mais o touro já febril, brutalmente enfraquecido, confuso e assustado.
Enquanto o touro é brutalizado na tourada, enquanto o cavalo é também vítima desta brutalização, e enquanto o sangue de ambos os animais escorre e mancha a arena em que este acto deplorável acontece, não são apenas toureiros (cavaleiros tauromáquicos e bandarilheiros) que participam nesta festa de sacrifício de animais – existe um público presente que, por minoritário que seja na sociedade portuguesa, aprecia e aplaude a violência a que assiste, regozijando-se com o sofrimento bárbaro que ali é infligido aos animais.
A necessidade de um referendo.
“Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”
Artigo 1º da Constituição da República Portuguesa
Embora possa não ser evidente ou flagrante o descontentamento e a tristeza sentidos pelo povo português perante situações degradantes que persistem e teimam em coexistir connosco, a verdade é que tal falácia poderá resultar precisamente do facto de já constituírem um costume, carecendo de uma falta de apuramento a nível nacional, uma consulta individual de cada cidadão, que viesse destronar uma realidade que, colectivamente, poderá não corresponder às pretensões e sonhos de todos nós.
Não deverá o recurso a um referendo nacional fundamentar-se quando, envolvida uma nação em circunstâncias particulares que só exprimem o desmazelo por valores fundamentais e a tendência para o culto da violência e da apatia perante situações de evidente violação de um direito inalienável comum a espécies humanas e não-humanas, como o do direito à vida, se torna manifestamente necessário averiguar qual o sentido que queremos dar à nossa sociedade, procurando preservar, estimar e redescobrir alguns fundamentos axiológicos que só podem enriquecer a nossa existência?
Será, porventura, mais enriquecedor valorativamente, proteger os interesses de um minoria que justifica os seus actos pela sua reiterada consumação, e resistir cegamente a “imposições” externas que, embora representações aparentemente minoritárias como uma esporádica manifestação e por vezes tão simplistas como a passagem de um pensamento para uma folha de papel, expressam uma esperança que continuamente renasce das cinzas, ou, por outro lado, ceder e, perante o tão aclamado benefício da dúvida, dar seguimento a um escrutínio popular que dará voz aqueles que, certamente não menos influentes, também eles devem decidir sobre situações problemáticas e assustadoramente actuais?
Questões estas que, seguramente, não suscitam qualquer dificuldade de resposta por parte de todos nós quando o objecto de tais situações infamantes é o nosso semelhante - o Homem – infelizmente assim já não sucede quando se trata de um animal não-humano. Tal facto deve-se, com certeza, a inúmeras e insondáveis razões, mas a verdade é que não nos devemos abstrair de erros actualmente cometidos, reveladores de um “especismo” anacrónico como este, para perpetuar sucessivos ataques a valores fundamentais que, em virtude de uma consciência mais aberta e plural, se estendem também, e necessariamente, aos nossos companheiros não-humanos.
O espectáculo tauromáquico é um atentado ao mais elementar dos deveres do Homem para com o animal. Muitos há que o sabem, ainda assim, numa cumplicidade mórbida, assistem. Outros há, indiferentes numa sociedade que não solicita a sua participação convicta que, consciente ou inconscientemente, consentem.
Uma imagem vale mil palavras, dizem, horas de toureio certamente valerão um precedente pesadamente negativo no historial de empatia, compreensão e afinidade entre o Homem e o animal. Mesmo quem, vivendo indiferente ao sofrimento gesticulado, à tortura muda, ao cansaço visível e às horas de solidão por que passam as verdadeiras vítimas das touradas nos momentos que antecedem tal espectáculo, permanecendo robustos e incansáveis até ao momento da verdade, de certo, no mínimo, consentirá o aclamado benefício da dúvida e porá em causa aquilo que para ele se ostentará como mais precioso – momentos de pseudo-cultura e ostentação humanas ou momentos de liberdade e paz para os touros e cavalos?
“Que prazer pode um homem civilizado retirar de um espectáculo de um fraco ser humano a ser dilacerado por um animal poderoso, ou de um esplêndido animal a ser trespassado por uma lança?”
Marco Túlio Cícero
A cultura é, deveras, um ponto sensível. A heterogeneidade da opinião popular, mais que um critério assertório da nossa soberania e fonte de afirmação social, deve fomentar o respeito por todas as diversas formas de representação cultural. Sem dúvida que devemos respeitar as decisões do próximo mas, certamente concordarão, com a excepção intuitiva de que não extravasem para ir entrar em conflito com direitos que nós próprios tenhamos como garantidos. Mas será esta a única restrição? Decerto que não, entre muitas outras, apresenta-se como evidente para muitos, o limite que não interfira com a autonomia, a independência, e o livre-arbítrio – seja por parte daquele que partilha connosco semelhanças cognitivas, físicas e psicológicas, mas também, e sobretudo, por parte daqueles que partilham connosco a capacidade de sentir, de sofrer, de exprimir ansiedade, desejo e desconforto, inteligência e auto-domínio, a que são comuns o Homem e os animais não-humanos. Dito isto, é moralmente exigível que alguém respeite outrem se este retribuir o respeito não só para o primeiro mas para com os outros.
A garantia com que todos nós, ou assim deveria ser, sentimos todos os dias as consequências, boas ou más, em virtude de acções deliberadas ou instintivas mas sempre fruto do nosso agir incondicional, deveria ser comum a todos os animais. Sabemos, no entanto, que tal é impensável nos dias que correm, tal é a dependência com que nos interligámos, falo, nomeadamente, dos hábitos alimentares extravagantes e, a meu ver e na perspectiva de muitas outras pessoas que hoje decidem adoptar uma alimentação vegetariana, moralmente disfuncionais da sociedade Ocidental. Ainda assim, nos momentos em que nos é possível devolver autonomia, falhamos. A expressão “do mal, o menos” tem continuamente falhado, e assim continuará se não nos mentalizarmos do mal que subjaz à posse de domínio irrestrito sobre o próximo e a tão pesada responsabilidade que acarreta.
Se em momentos de hierarquizar, axiologicamente, entre a nossa acepção de entretenimento e a autonomia existencial dos animais, nem sequer hesitamos, que reflexo poderá ter nas nossas próprias relações, na forma com que nos visualizamos mutuamente e nos critérios com os quais atribuímos valores, direitos e deveres aos da nossa espécie?
A Lei n.º 92/95 de 12 de Setembro, que apresenta a seguinte epígrafe “Protecção aos animais”, e que constitui o documento legislativo actualmente mais ambicioso no domínio da protecção animal, dispõe da seguinte forma:
“Artigo 1.º
1 – São proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal.
2 – Os animais doentes, feridos ou em perigo devem, na medida do possível, ser socorridos.
3 – São também proibidos os actos consistentes em:
(…) e) Utilizar animais para fins didácticos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou actividades semelhantes, na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimentos consideráveis, salvo experiência científica de comprovada necessidade;
f) Utilizar animais em treinos particularmente difíceis ou em experiências ou divertimentos consistentes em confrontar mortalmente animais uns contra os outros, salvo na prática da caça.”
No artigo 3.º, sob a epígrafe “Outras autorizações”, o ponto 2 dispõe: “A touradas são autorizadas nos termos regulamentados”.
Confrontando este último artigo (artigo 3.º 2.) com todas as alíneas do artigo 1.º, referidas acima, rapidamente se revelará como evidente a existência de uma excepção no domínio dos maus-tratos aos animais – os espectáculos tauromáquicos. Quaisquer que tenham sido os motivos por detrás da elaboração do disposto no artigo 1.º, certo são que visam, acima de tudo, devolver princípios básicos aos animais e atribuir-lhes direitos que correspondem a deveres da nossa parte. Assim sendo, é incongruente atribuir uma excepção em domínio de valores fundamentais, quando esta dispõe precisamente em sentido contrário, atentando contra os mesmos. Perdem toda a relevância objectiva e material as disposições que visam proteger e consagrar direitos inalienáveis, quando se consentem excepções que admitem comportamentos opostos.
Reconheça-se que o espectáculo tauromáquico já esteve proibido, por Decreto de 12 de Setembro de 1836, no nosso ordenamento jurídico, muito embora, pouquíssimo tempo depois, haja sido revogado pela Lei de 20 de Junho de 1837. Já com a Lei n.º 19/2002, de 31 de Julho, é concedida uma “autorização excepcional” que permite, quando na sequência de um costume de incumprimento à anterior lei, os touros de morte. Este seguimento cronológico de legislação necessariamente despertará um sentido crítico e uma atenção especial por parte dos Legisladores e dos cidadãos comuns.
Não se impõe ao poder político que altere situações que apenas uns opinem que assim devia ser, mas sim aquelas em que uma maioria se pronuncia, tendo oportunidade para tal.
As leis devem exprimir o consenso e o assentimento da maioria dos cidadãos de um Estado, se assim não for, uma lei de nada valerá, pelo menos materialmente falando. Ter-se-á aplicado este princípio regulador na Lei de 20 de Junho de 1837 acima referida? Certamente que não. Será este o princípio regulador do processo legislativo num Estado de direito democrático e social? Esperemos que sim. Será este o momento, fazendo jus a tudo aquilo que aprendemos ao longo de tanto tempo, oportuno a uma rectificação, a um confronto entre capacidade decisória e mera exaltação de valores? Sabemos que sim. A oportunidade cria o momento. Chegada a altura de decidir, o resultado falará por si e ganhará toda a relevância.
Depois de algum tempo a ler todos os depoimentos, factos, reportagens, dissertações, entrevistas, só posso concluir que toda a tinta que correu, todo o tempo que se passou a falar do assunto não pode nem deve ter sido em vão, toda a polémica sobejamente conhecida em torno do espectáculo tauromáquico só existe pelo facto de sabermos que existem vítimas de sangue durante o processo, que toda e qualquer réstea de compaixão é esmagada pelo som ensurdecedor de pessoas a aplaudir o mal consumado no final das touradas. Peço que ouçam este pedido que é partilhado por milhares de pessoas já descrentes numa solução quando nem o poder político sequer se roga a mencionar o assunto. Peço que não ignorem este apelo sob pena de também eu me tornar um descrente. Pouco a pouco, a esperança de testemunhar a vitória dos verdadeiros interesses sobre os interesses económicos que pairam sobre este negócio, vai-se perdendo...
por André Barros
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